Como disse Cazuza, um museu de grandes novidades!1

No se pode olvidar que a polcia brasileira reconhecida
nacionalmente e internacionalmente como uma das polcias
mais letais do mundo, a contagem dos corpos assassinados
pela polcia, sobretudo, os corpos negros, pobres e perifricos
assustam pela permanncia e pela condio de normalizao
da exceo como prxis policial.2
(Lucas da Silva Santos, Violncia (criminosa) do Estado, p. 5)
Por Jos Burato (*)
Publicado originalmente no site da Ponte
A famigerada Operao Vero foi encerrada no dia da mentira, 1ode abril, coincidentemente no mesmo dia e ms em que se iniciou a ditadura militar no Brasil, em 1964. Algo para se pensar e refletir sobre o que h de mentira e o que h de resqucios da ditadura militar nessa operao policial de grande porte, ordenada pelo governador paulista e seu secretrio de segurana pblica.
Conforme anunciou o governo estadual, a estratgia de combate ao crime organizado por meio da asfixia financeira do trfico de drogas terminou, sendo substituda pela ampliao de efetivo de 341 PMs que passam a atuar de maneira permanente nas cidades da regio. Segundo o secretrio Guilherme Derrite, os objetivos da Operao Vero, iniciada como Operao Escudo no ano passado, foram cumpridos, ou seja: a captura de alvos identificados, decorrente do trabalho de inteligncia conjunto entre as polcias, e a reduo dos ndices criminais na Baixada Santista3. Mas o combate ao trfico de drogas prosseguir, nem poderia ser diferente, afinal o combate est na lgica da guerra, e a guerra est na lgica do sistema de segurana pblica no Brasil.
Ento, essa operao policial que outrora tinha carter preventivo por conta da quantidade enorme de pessoas que se deslocava ao litoral, teve agora um flagrante carter de guerra. Na guerra aquilo que se viu: morte aos inimigos e aos que parecem ser inimigos. Afinal, como a histria das guerras tem demonstrado, quando se despejam bombas sobre vilarejos ocupados por foras inimigas, ningum se importa com a morte de civis.
Devemos considerar, tambm, que mesmo que essa represso fosse realmente indispensvel, deveria ser feita de forma transparente, com o uso de cmeras corporais nos policiais, por exemplo. Alis, a ausncia desses dispositivos corporais gerou muitas crticas tambm, cad as cmeras? Desde 2020 a Polcia Militar de So Paulo tem oPrograma Olho Vivo, que rendeu bons resultados e boas reflexes5. Mas por que as cmeras corporais no foram usadas numa operao policial de tamanha gravidade?
A Operao Escudo foi deflagrada pelo governo do estado de So Paulo em julho de 2023, respondendo morte de um policial militar das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), ocorrida em Guaruj. Nos 40 dias dessa operao, morreram 28 pessoas. Em dezembro do mesmo ano essa operao foi estendida, mas rebatizada como Operao Vero. Mesmo com fortes crticas e muitas denncias de violncia policial, o governo paulista intensificou a operao, aumentando o efetivo policial nas cidades litorneas, principalmente depois da morte de outro policial da Rota6.
Os elogios de empresrios e juzes fortalecem a posio do governador de So Paulo, levando-o a declarar, em 8 de maro, que no estava nem a com as reclamaes sobre o excesso de violncia policial, e que poderiam ir [reclamar] na liga da justia e no raio que o parta7! Tpico daqueles que desejam parecer estadistas, segundo a concepo de Maquiavel.
Oito dias depois dessa declarao, a Operao Vero acumulava 47 mortes, e a aprovao ao governo de Tarcsio de Freitas em Santos, segundo uma pesquisa realizada pela Paran Pesquisas, havia subido dez pontos, atingindo quase 72%. Ou seja: podemos concluir que, caso a pesquisa seja confivel, ou bem a maioria da populao de Santos no tomou conhecimento das numerosas evidncias e denncias das atrocidades cometidas pela Polcia Militar na Baixada Santista, o que improvvel, ou bem apoia incondicionalmente a operao policial e os seus resultados, o que mais provvel. Isso pode decidir a eleio para a Prefeitura da cidade, visto que, ainda segundo a aludida pesquisa, hoje o governador pode influenciar 65,6% dos votos a favor de um(a) candidato(a) que ele apoiar influncia significativamente maior que a de Bolsonaro.89
Dois dias antes do trmino da Operao Vero, um jovem de 22 anos, apesar de estar em grande desvantagem numrica e de poder de fogo, inexplicavelmente ousou (assim como tantos outros no Brasil) enfrentar uma equipe policial, em Guaruj. Esta foi a quinquagsima sexta pessoa morta em decorrncia de interveno policial na Baixada Santista! No passado, incidentes letais desse tipo eram oficialmente registrados como resistncia seguida de morte10. Outro caso gritante de incompreensvel ousadia, diria at absurda ousadia, foi a alegada resistncia de um homem que s no era completamente cego porque ainda tinha 20% de viso em um dos olhos, e que acabou morto pela polcia11. Esse caso est descrito em um relatrio que denuncia execues sumrias, torturas e invases de domiclios durante a Operao Vero, assinado por dez entidades ligadas defesa dos direitos humanos e que foi entregue ao procurador-geral de Justia de So Paulo, em fevereiro de 2024.12
As crticas e denncias da extrema violncia da PM no geraram reao apenas no governador: parte da sociedade apressou-se a apoiar a Operao Vero. Mas podemos compreender melhor como pensa essa frao da populao depois que tomamos conhecimento das palavras de um comandante da PM, o coronel Cssio Arajo, que numa entrevista TV Tribuna, de Santos, disse que se tem uma instituio que defende os Direitos Humanos so as PMs do Brasil, porque ele no v nenhuma outra instituio que defenda mais, visto que as PMs tiram armas e criminosos das rua.13
Segundo a opinio de muita gente, direitos humanos so exclusivos para os humanos direitos, e bandido bom o bandido morto. Assim sendo, ficam perplexos quando algum defende os direitos humanos para todos, sem exceo. As frases feitas, como leva pra sua casa [o bandido ou menor infrator] demonstram a enorme dificuldade que essa gente tem de compreender que uma das bases da civilizao o respeito ao Direito, s normas.
Sistema social opressor, segurana pblica idem
No percamos de vista que vivemos num sistema social brutalmente opressor e explorador, centrado no capitalismo neoliberal, que gera criminalidade e violncia sem, contudo, ser responsabilizado socialmente por tal. Dessa forma, como esse sistema social no se prope a resolver esses problemas na raiz, ao contrrio ele cria tais problemas, dispe de um subsistema poltico adequado s constantes respostas pontuais que seriam, em tese, representaes da vontade popular isto demonstrado no voto. Um exemplo dessa resposta o investimento do governo do Estado de So Paulo, por meio de sua Secretaria de Segurana Pblica, anunciado com a devida pompa poltica no dia 11 de maro14, de cerca de R$ 70 milhes em equipamentos, viaturas e na reforma de unidades policiais, alm do destacamento de 300 recrutas policiais militares recm-formados para a melhoria da proteo da populao dos municpios da Baixada Santista. Trata-se da manuteno da lgica da preveno secundria, que aposta nas polcias e nas leis como elementos de dissuaso da criminalidade e violncia, crena que a histria demonstra equivocada, mas que rende votos e eleies.
Todo investimento com equipamentos, armas, viaturas etc. que auxilie o bom desempenho e a segurana dos prprios agentes de segurana pblica inegavelmente bem vindo, ainda que o objetivo do investimento permanea suspeito quando em perodo muito prximo s eleies. Porm, por melhores que sejam a inteno e o resultado prtico desse investimento, ainda so insuficientes, porque no mudam a mentalidade e o comportamento daqueles(as) operadores(as) de segurana que reproduzem a arbitrariedade, o abuso e a violncia. Alm disso, h de se cuidar melhor da sade dos policiais, especialmente do problema complexo do suicdio. Em 2023, por exemplo, houve o maior nmero de suicdios de PMs dos ltimos 11 anos: foram 31 vtimas, a segunda maior causa de morte de policiais, perdendo apenas para as mortes naturais 32 policiais. Portanto, no ano passado os suicdios foram quase o dobro dos homicdios de policiais, que foram 16.15
claro que a realidade brasileira complicada em todos os sentidos. No campo da segurana pblica no seria diferente, alis, nunca demais lembrar que a violncia de estado proporcional violncia econmica e, dessa forma, o sistema exige um tipo de segurana adequado a essa realidade, ou para dar conta dos efeitos dessa realidade.
Essa realidade gera uma violncia e criminalidade imensurvel. Uma vez estabelecida a doena, resta combater os seus efeitos, pensa a maioria dos brasileiros. E assim tem sido desde sempre. Tantas vezes cobramos a preveno primria da violncia e criminalidade, mas esta parece nada ter a ver com o nosso capitalismo dependente, porque na lgica da dependncia isso seria impraticvel.
As consequncias desse sistema so surpreendentes no campo da criminalidade, porque ele simplesmente abandona a populao perifrica prpria sorte, possibilitando aes criminosas ousadas e que exploram as carncias populares. Um exemplo disso so as sete igrejas evanglicas abertas pelo traficante de apelido Colorido, integrante do PCC, no Rio Grande do Norte e no estado de So Paulo.16
O investimento na preveno secundria fala diretamente ao eleitorado, impressionando-o. Talvez isso explique um gasto de quase meio milho de reais em fuzis (!) adquiridos para uso da Guarda Civil Metropolitana (GCM), como fez a Prefeitura de So Paulo em 2023, para serem empregados, segundo um artigo doPortal Terra17, em zonas de guerra (?!?). Um absurdo, que traz como dano colateral uma indevida militarizao da GCM.Enfim, como dissemos no incio do texto, terminou a Operao Vero de forma satisfatria para o governo estadual, como ele prprio declarou. Foram retiradas das ruas da Baixada Santista muita droga, muitas armas, muitas pessoas procuradas pela justia, e muitas vidas humanas. Cinquenta e seis pessoas, 56 populares!, foram assassinados em decorrncia da interveno policial, mas o secretrio de Segurana Pblica nem sabia disso. As entidades de defesa dos Direitos Humanos sabiam, porque acompanhavam de alguma forma a Operao; a mdia sabia porque divulgava informaes diariamente; eu sabia, porque reunia material para escrever este texto quase todos os dias; voc sabia, porque acompanhava as notcias sobre o desdobramento da Operao. Mas Guilherme Derrite revelou publicamente que no sabia e, ainda, afirmou que essa a vida real, no o mundo utpico de olha, teve nmero xisde mortes.18
Essa estranha declarao do secretrio Derrite para a qual cabe a interpretao de que para ele o nmero de vidas perdidas algo irrelevante fez lembrar um antigo secretrio da mesma pasta, Ferreira Pinto, que h dez anos disse numa entrevista sobre a PM que:
Violenta ela . Qual polcia do mundo no tem um grau de violncia? Mas aqui em So Paulo existe essa preocupao muito grande com letalidade. Na hora em que diz que reduziu a letalidade, eu vou traduzir para voc o que o governo falou: ns estamos preservando a vida do bandido. Ns estamos impedindo que a Polcia Militar v para o confronto.19
Essa operao policial recm-encerrada no estado de So Paulo apontada, por diversos meios de comunicao, como a mais letal desde o Carandiru20. Com efeito, acabamos falando do Carandiru, nos lembramos do Carandiru. Isso nos faz recordar tambm de Eldorado do Carajs, e tantos outros massacres realizados pelo Estado, por intermdio de suas foras de represso, como a operao policial em Varginha (MG), por exemplo, no final de outubro de 2021, quando 26 pessoas foram mortas e que foi considerada pela Polcia Rodoviria Federal (PRF) um sucesso, mas que teve 40 policiais indiciados pela Polcia Federal por homicdio qualificado, tortura e fraude processual.21
Na verdade, porm, mais letal que o Carandiru foi o massacre de maio de 2006, quando a PM paulista em retaliao ao assassinato de mais de 40 policiais militares em atentados realizados pelo grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC) matou em poucos dias cerca de 500 pessoas, lotando os necrotrios do Instituto Mdico-Legal (IML). Crimes hediondos da PM, sendo que diversas vtimas foram escolhidas aleatoriamente. Nenhum soldado ou oficial foi punido at hoje.
Tudo isso nos faz lembrar (no pea para esquecermos, Presidente!) a Ditadura Militar, cuja herana prtica e ideolgica ainda se manifesta nessas operaes e massacres, e que por ser relativamente recente ainda h, por um lado, sobreviventes cobrando justia, e por outro lado h defensores dos algozes exigindo esquecimento, ou zombando das vtimas, ou homenageando torturadores e at mesmo exercendo cargos polticos relevantes.
Consideraes finais
Pois bem, terminou a Operao Vero! A partir de agora as atenes se voltam para a Operao Fim da Linha, de carter interinstitucional, envolvendo a Polcia Militar, o Ministrio Pblico de So Paulo (MP-SP) e a Receita Federal, e que foi deflagrada no dia 9 de abril, segundo o MP-SP, para desbaratar esquema de lavagem de recursos obtidos de forma ilcita pela faco criminosa PCC.22
Para esta operao, a Secretaria de Segurana Pblica destacou mais de 300 policiais para o cumprimento de 56 mandados de priso e busca e apreenso. Ento, por se tratar de ao diretamente contra o PCC, atingindo uma de suas bases financeiras, a Polcia Militar paulista estaria em estado de alerta, porque h possibilidade de retaliao por parte da faco criminosa.23
preocupante essa possibilidade de outra guerra declarada entre o Estado e o PCC, porque, como dissemos anteriormente, uma guerra significa profundo sofrimento da populao civil, neste caso a populao perifrica, que no poupada por nenhum dos dois lados beligerantes as duas foras opressoras no conflito armado colocam a populao da comunidade entre a cruz e a espada. Nessa concepo de guerra, a fora armada do Estado avana sobre a periferia caando o inimigo, entendendo todos(as) ali como antagonistas maltratam o povo, humilham moradores, invadem residncias, cometem torturas e execues, tornando a j difcil vida dos perifricos um inferno.
Por outro lado, a fora armada do crime organizado se mistura populao, s vezes utilizando-a como escudo: ameaam os moradores, impem o terror s pessoas, torturam, julgam em seus tribunais do crime e matam os condenados.
Percebemos, ento, que a questo ora refletida est intimamente ligada a uma lgica nefasta que orienta o sistema de segurana pblica no Brasil, a lgica de guerra. Com efeito, se determinada ao policial necessria, ela deve ser realizada com respeito aos direitos humanos de todos, porque as foras policiais dispem de servio de inteligncia para preparar o caminho, alm de efetivo e armamento superiores a qualquer faco criminosa.
No se trata de questionar o direito legtima defesa dos(as) agentes de segurana pblica, que correm riscos tanto no exerccio da funo quanto nas horas de folga, mas sim de impedir o inaceitvel uso deste recurso legal como pretexto para cometer assassinatos.
Para enfrentar o crime organizado, falamos aqui dos combates propriamente ditos, inegvel que, alm do efetivo e armas superiores em quantidade e qualidade, a PM, por exemplo, tem uma preparao tcnica adequada. A Operao Escudo e a Operao Vero, porm, pautaram-se por uma lgica deterrorismo de estado, com o objetivo no propriamente de combater o crime, mas sim de 1) vingar mortes de policiais e 2) produzir estatsticas que sirvam a objetivos polticos e eleitorais do governo estadual, na linha de bandido bom bandido morto.
Na verdade, a lgica de guerra ao crime e o respeito aos Direitos Humanos so inconciliveis. Isto fica claro tanto nas aes e operaes policiais comuns quanto nas operaes de enfrentamento direto ao crime organizado e nos seus decorrentes conflitos. Esta a razo pela qual to preocupante a possibilidade de novos conflitos declarados entre as foras estaduais e as foras do crime organizado, especialmente porque a populao perifrica ficar no meio do fogo cruzado.
Insistimos: enquanto no houver uma reestruturao profunda do sistema de segurana pblica e das polcias do Brasil; enquanto no superarmos a lgica de guerra ao crime e s drogas, em proveito do respeito aos Direitos Humanos e Constituio Federal; enquanto no houver desmilitarizao das Polcias Militares e no extinguirmos a ideologia militarista que orienta todo esse sistema, no avanaremos, no teremos uma sociedade mais segura. No precisa ser adivinho para dizer que se no houver essas mudanas, daqui a dez anos estaremos falando as mesmas coisas, mas sobre novas operaes e massacres.
(*)Jos Burato graduado em Filosofia, ex-sargento da PMSP, autor do livro Ditadura no gatilho: a institucionalizao da violncia policial(Scortecci, 2017) e diretor de comunicao da Associao de Professores(as) de Filosofia e Filsofos(as) do Brasil (Aproffib)