Do ponto de vista do estrito aspecto legal, a aprovao do Sistema nico de Sade SUS na Constituio Federal de 1988 foi um duro golpe nas classes dominantes brasileiras, formadas na explorao e apoderamento do Estado atravs da concentrao de renda e da excluso social.
Numa rea estratgica para eles, a sade, que sempre tiveram como fonte privilegiada de ocupao e exerccio de poder e significativos ganhos materiais, num sentido inverso o SUS apontava para a garantia de acesso universal e integral s aes e servios e, suprema provocao, a prtica da democracia participativa atravs dos Conselhos e Conferncias de Sade.
Era demais! Logo passaram ofensiva atuando politicamente nos legislativos e nos diversos espaos constituidos para, fosse atravs de adequaes legais como as leis que criaram as organizaes sociais, as organizaes da sociedade civil de interesse pblico e as parcerias pblico-privadas, fosse simplesmente descumprindo requisitos legais como o que determina que o SUS pode contratar servios privados apenas de forma COMPLEMENTAR, continuar e at mesmo aprofundar o apoderamento do Estado, dos seus recursos e das suas instituies.
Comprometimento do j insuficiente financiamento, dependncia do setor privado para a realizao de procedimentos, total e absoluta precarizao da contratao e da remunerao da fora de trabalho, corrupo generalizada e profundas distores nos instrumentos de gesto e gerncia da rede tm desde ento minado a capacidade do Sistema que tem resistido graas aos abnegados trabalhadores e parte dos gestores.
A partir do primeiro governo Lula, setores que se identificam como esquerda, grande parte deles integrantes do Partido dos Trabalhadores, passaram a defender novas propostas de gesto e gerncia da rede como alternativa, de acordo com a narrativa ento colocada, privatizao do SUS atravs das OSs, OSCIPs, etc.
Comearam com as fundaes estatais de direito privado. A palavra estatais no gratuita, pois busca iludir os incautos menos atentos de que do Estado o que diga-se, verdade -, consequentemente no seria privada, e que dessa forma a privatizao estaria sendo debelada do SUS. Vieram em seguida a EBSERH, o Servio Social Autnomo e, por fim, escancarando os reais objetivos, os parceiros privados, que do ponto de vista prtico tem poucas diferenas das famigeradas OSs e OSCIPs.
Alm de terem feito tudo revelia das decises em contrrio dos Conselhos e Conferncias de Sade, h duas questes que os revisionistas parecem no compreender quando apontam essas propostas como as solues quase miraculosas para enfrentar a privatizao no SUS.
A primeira que no h somente a privatizao clssica, quando um bem pblico vendido, ou como no caso do SUS que no pode ser vendido entregue a um ente privado para ser administrado, a serem consideradas. A nefasta histria da privatizao do Estado brasileiro se d tambm de outra forma to cruel quanto a privatizao clssica, como o caso do seu apoderamento por grupos econmicos e polticos que dele se utilizam para as aes patrimonialistas, clientelistas e fisiologistas.
Todas essas alternativas apresentadas e implantadas pelos revisionistas do SUS so ferramentas privilegiadas de apoderamento do Estado atravs de indicaes polticas para suas direes e cargos comissionados, gratificaes elevadssimas para os que integram as cpulas diretivas, bem como clientelismo nas contrataes e demisses de pessoas e nas compras de insumos em geral. Convenhamos que essas so caractersticas de um Estado historicamente explorado e assaltado, e que, antes de serem fortalecidas, como so com essas experincias, precisam ser extirpadas.
Num breve balano, em nenhum lugar onde essas ferramentas de gesto foram implantadas, os reais e estruturais problemas do SUS foram resolvidos. Num sentido inverso, muitos outros problemas foram criados, como so os casos das denncias de corrupo, da criao de verdadeiras castas e seus privilgios e fartos casos de assdio moral. Alm disso, a falta de resolutividade dos servios continua sendo a regra e todas foram transformadas em aparelhos polticos disputados por grupos organizados a depender do governo de planto. Tudo que desgraadamente sempre houve no Estado brasileiro, agora de forma mais sofisticada e cruel.
A outra questo diz respeito ao aspecto conceitual do Sistema nico de Sade. A palavra nico no apenas figurativa, significa que se realmente o Sistema e suas regras fundamentais no forem nicas, ele no se sustenta, no se viabiliza.
Sob esse prisma constatamos que diante dos ataques que comearam a ser desferidos contra o SUS desde a sua aprovao e posterior regulamentao, as solues apresentadas pelos revisionistas, antes de fazerem realmente o enfrentamento com os nossos adversrios, retroalimentaram o processo de destruio conceitual do Sistema.
Foi assim com a contratao em massa e at mesmo de forma substitutiva ao pblico de servios privados como forma de atender demandas da populao, ao invs de estruturar e ampliar a rede prpria, pblica, alimentando dessa forma uma forte e concorrente rede privada que cada vez mais competia e compete com o SUS na realizao de procedimentos e na contratao de profissionais. Ns aprendemos, bom relembrar, que no h como ter um Sistema de Sade pblico, universal e integral, com fortes sistemas privados concorrentes.
Foi assim quando estimularam a constituio e contratao de cooperativas de profissionais, no enfrentando o problema da remunerao e valorizao dos trabalhadores e consolidando com isso a mercantilizao do trabalho na sade.
Foi assim quando no colocaram na pauta as dificuldades na gesto e na gerncia da rede, para debater a legislao e as possveis formas de resolve-las, optando pela criao dos novos paradigmas de gesto, OS, OSCIP, Fundao Estatal, Servio Social Autnomo, EBSERH, Parceiro Privado que, como vimos, no somente no solucionaram nossos problemas estruturais como aprofundaram os que existem e criaram outros.
Isso tudo explica a permanente crise nos hospitais federais no Rio de Janeiro. O clientelismo, as indicaes poltico-partidrias sem nenhum critrio que no seja a nefasta ao patrimonialista, a precarizao da fora de trabalho como regra e a total ausncia de debate democrtico, mantm os hospitais em permanente estado de sofrimento que nunca enfrentado com a seriedade que merece.
Sem qualquer debate no Conselho Nacional de Sade, no Setorial Nacional de Sade do PT ou qualquer outro espao de legitimao democrtica, comea a ser divulgado em rgos de imprensa que a idia de que a gesto das 22 unidades(hospitais) da Unio seja repassada a diferentes rgos sob a superviso da Casa Civil e no mais do Ministrio da Sade. importante lembrar que a Casa Civil comandada pelo ex governador da Bahia, estado onde o SUS mais sofre com as experincias privatizantes, pioneiro inclusive na PPP em sade.
Ha unidades que vo virar fundaes; outras, empresas pblicas e h a previso de entrada, no Rio, do Grupo Hospitalar Conceio. Um hospital deve passar para o estado; outro para o municpio. O maior do Rio, o INCA, com quatro unidades, deve passar a ser gerido por Parceria Pblico-Privada.
No nenhum exagero afirmar em alto e bom som que poucas vezes tomamos conhecimento de algo to grave a ser pensado para servios do SUS no Brasil. Se sabemos que aquilo que faz o Ministrio da Sade, aparece como referncia para estados e municpios, podemos imaginar o que pode ser deflagrado em todo o pas.
No h soluo para o SUS sem o combate a TODAS as formas de privatizao e sem eliminar de vez todas as ferramentas e instrumentos de gesto que diversificam e fragmentam suas regras conceituais, que deveriam ser nicas de fato, cabendo as excees e flexibilizaes aos casos bem especficos.
A contratualizao direta entre os servios e seus respectivos nveis de gesto, de modo a lhes prover plena autonomia administrativa, financeira e poltica, bem como a profissionalizao da sua gesto atravs de critrios tcnicos previamente definidos e a criao de uma Carreira nica interfederativa, tripartite, por adeso e diretrizes e regras nicas em todo o pas, so os caminhos para a superao de desafios histricos, sintonizados com seus conceitos e princpios
